Entre os colegas médicos, corre uma piada que diz que quem escolhe ser psiquiatra abandona a medicina, aquela tecnológica, da ressonância magnética e da genotipagem, da vacina e da cirurgia, aquela que desafia a Ira dos Deuses, esvaziando o reino dos mortos com suas curas cada vez mais audaciosas. Isso é um engano, como mostrarei a seguir.
De fato, a sociedade como um todo tem dificuldade em entender nosso papel, e o que é possível esperar de nós. Não ajuda na confusão o fato de haver dois profissionais de atuação tão próxima oferecendo seus préstimos para tratar dos mesmos problemas – os psiquiatras e os psicólogos.
O que define, então, o trabalho dos psiquiatras?
Os psiquiatras são, em primeiro lugar, médicos. Acho triste que alguns se esqueçam disso. Na medicina, a ciência e a arte de curar se misturam de uma maneira única, em que o médico recebe do paciente uma dose gigantesca de sua confiança, que ninguém mais recebe. Abre o coração, conta seus segredos mais íntimos, deixa-se examinar, ser palpado, justamente onde dói, medido, cutucado, perfurado por agulhas, colocado em equipamentos barulhentos e assustadores, atravessado por raios X... tem o corpo e alma perscrutados em busca da doença.
O médico, aí é que bate o ponto, é tão humano e tão mortal como ele. Ambos são húmus, feitos de matéria da terra. O que os une? O que sustenta essa relação tão especial, que tanta intimidade permite? É, conforme diz o aforismo hipocrático, o compromisso do médico em usar o melhor de sua ciência para curar. Quando não puder curar, para aliviar o sofrimento. E, quando nem isso for possível, confortar sempre.
Esse compromisso, no século XXI, leva a psiquiatria para as fronteiras do conhecimento. As novas gerações de medicamentos psicotrópicos são resultado de pesquisa farmacológica de ponta. Os efeitos dos hábitos de vida (alimentação, exercício) sobre condições como depressão e ansiedade estão sendo desvendados nos seus diversos mecanismos biológicos: desde a regularização dos níveis de cortisol até os efeitos benéficos dos probióticos ou do ômega-3. Todo um novo rol de tratamentos por neuromodulação vem sendo desenvolvido para influenciar a forma como as diferentes áreas do cérebro são ativadas, o que abre portas revolucionárias ao cuidado dos nossos pacientes.
Tudo isso nos enche de esperança, e já começa a fazer parte do dia a dia do psiquiatra moderno.
Do mesmo modo, porém, que erra o psiquiatra que esquece que é médico, também erra feio aquele que acha que seu paciente se limita aos neurotransmissores. Nós, pessoas, somos corpo e mente. Quando alguém em sofrimento me procura, não lhe basta o diagnóstico de uma patologia, ele espera que eu compreenda como é estar doente aquela pessoa em particular diante de mim, mãe, pai, filho, profissional, artista, amigo, etc.
O psiquiatra lida com a liberdade humana, e não pode pretender explicá-la com base em grosserias como circuitos neurais ou neurotransmissores. Um dos pais da psiquiatria moderna, Karl Jaspers, chamou os que tentam fazer isso de “mitólogos do cérebro”.
Pela particularidade daquilo com que lidamos, tanto o cérebro como a mente, nenhum redutível ao outro, estaremos sempre na fronteira, cientistas e artistas, profundamente humanos, com o objetivo de ajudar os semelhantes que sofrem.
E os psicólogos?
Minha amiga Larissa Silva, do Click Terapia, mestra em psicologia pela USP, vai contribuir com um texto em breve para explicar a diferença.
Dr. Fernando Ezquerro, psiquiatra
Belo texto, Dr. Fernando. O paciente realmente espera e precisa de um olhar especial !